domingo, 25 de março de 2012

Decisão em The Bridges Of Madison County

Como escreveu Henrique Raposo "inferno é estar entre os melhores anjos da nossa natureza", será viver entre dois céus, será fazer uma escolha impossível e viver até ao nosso último sopro em comunhão com essa decisão. 
Ninguém desconfiará, ninguém imaginará que aquelas cinzas sossegadas e discretas, foram um fogo que ardeu violentamente. Ninguém saberá que há um lado (há sempre um lado) desconhecido e secreto, que apenas a nós pertence, como se não tivesse existido. E não existe, porque a vida é o dia a dia, os grandes momentos são apenas instantes passageiros ocultados pelo movimento diário.
Esta cena é testemunho dum desses grandes momentos, porque o cinema é perito em ocultar a vida de todos os dias - aquilo que passamos a maior parte do nosso tempo a fazer, a sentir ou a pensar - e a eternizar os instantes decisivos da vida:


segunda-feira, 19 de março de 2012

Paris Texas


Wenders é um dos realizadores mais singulares da sétima arte. Os seus filmes são dum lirismo apaixonante e este emblemático Paris Texas é um exemplo disso mesmo.
Paris Texas é um filme sobre a ausência, sobre o regresso, sobre a partida, sobre a busca, sobre o reencontro, sobre os sentimentos, sobre a dicotomia homem/mulher, sobre os laços de sangue, sobre as coisas que podemos ocultar do mundo todo, mas não podemos negar a nós próprios.

Será possível entregarmo-nos ao amor sem negarmos a nossa própria liberdade? Até que ponto podem duas pessoas estar tão próximas sem que se sobreponham uma à outra? Sem que a razão de viver duma passe do seu próprio centro para o umbigo doutra pessoa? Será possível que na fusão de corpo e alma com alguém não abdiquemos um bocadinho de nós?

Paris Texas é também sobre o afastamento, o desespero e a solidão. É sobre a melancolia provocada pelo afastamento, mas também sobre o desprendimento que só o tempo consegue dar. Um desprendimento e ligeireza que são apenas exteriores, na maneira de se lidar com os sentimentos viscerais, porque o apego interior continua, o enternecimento torna-se mais real e sentido, simplesmente fica adormecido pelas idiossincrasias da vida, pela apatia que a vida traz.
E, acima de todos estes temas, é sobre o reencontro. Há reencontros que acontecem porque a vida assim o quis, outros que acontecem porque as pessoas os procuram e outros que simplesmente não acontecem. Mas as pessoas que se reencontram são sempre diferentes das pessoas que existiam antes, das pessoas que estavam encontradas outrora. Porque as pessoas renovam-se continuamente no incessante movimento diário e tal como há pessoas que parece que nem se afastaram por um segundo (mesmo que passem vidas e vidas), há afastamentos que são irrecuperáveis.

Ou nas magníficas e elucidativas palavras de Alçada Baptista no genial O Riso De Deus:
"...tu és um ser singular e a tua singularidade não pode sobrepor-se à minha. Muitas vezes parece que isso pode acontecer e as mulheres, sobretudo, têm uma capacidade de doação que as faz quase desistirem de si próprias para seguirem o caminho que um homem vai traçando com a sua singularidade para não dizer com os seus caprichos. Às vezes penso que o amor humano é um estímulo para termos um grande enternecimento com o mundo porque eu não sei se será possível lançar sobre alguém o nosso fogo interior sem que isso nos tire a liberdade.”

Será que a liberdade e o amor são inconciliáveis ou será o amor que nos dá a liberdade?

domingo, 18 de março de 2012

sábado, 17 de março de 2012

The Dark Knight


Finalmente esta nova saga de Batman veio fazer jus a um dos heróis mais queridos da BD.
Com o primeiro, Nolan conseguiu uma obra de elevado valor, mas com o segundo conseguiu transcender todas as expectativas.
Bruce Wayne é mais realista, os vilões são mais desafiantes, a história tem mais sumo e a própria Gotham City é mais próxima das nossas cidades.
Recheado de actores soberbos (Freeman e Caine são irrepreensíveis nos seus discretos papéis), The Dark Knight vive sobretudo dos vilões.
Joker é incansável, como sempre o são os que a loucura possui. O olhar alucinado do protagonista e os trejeitos na excelente prestação de Ledger elevam a personagem ao patamar dos vilões mais emblemáticos do cinema (não desfazendo o trabalho de Nicholson no primeiro Batman de Burton).
No entanto, apesar de Joker ser o principal vilão, é Two Faces quem colmata todo o sentido do filme.
The Dark Knight é sobre a crença de que no meio da corrupção pode haver valores que se elevem. Mas (e porque há sempre um mas) essa elevação é duma enorme fragilidade e pode facilmente ser ceifada. É sobre a loucura e o que é verdadeiramente ser insano num mundo como este, numa sociedade fabricada por nós. É um filme que questiona o que é certo ou errado. É um filme em que o bem e o mal se fundem impedindo a compartimentação de valores.

É um filme sobre uma sociedade cada vez mais e mais descrente, esmagada por todo o tipo de tentações e consumismo.
É um filme sobre as materialismos que criamos e alimentamos com um medo irreprimível do caos, do desconhecido, do incerto.
É um filme sobre o herói que cada um de nós precisa para acreditar num amanhã melhor.
É um filme sobre a esperança de que os nossos heróis sejam perfeitos e que essa perfeição não sofra mutações ao longo do tempo.
Mas nas sábias palavras de Harvey Dent: "You either die a heroe or you live long enough to see yourself become the vilain.".

And we all need someone to look up to, don't we?

sexta-feira, 16 de março de 2012

The Things We Have In Common

"We have created characters and animated them in the dimension of depth, revealing through them to our perturbed world that the things we have in common far outnumber and outweigh those that divide us."
Walt Disney

quinta-feira, 15 de março de 2012

quarta-feira, 14 de março de 2012

Florbela


Florbela Espanca é um dos maiores vultos da literatura portuguesa.
A literatura portuguesa é particularmente rica em poesia e esta poeta foi uma das maiores nessa arte.

"Os poetas são como toda a gente sabe seres de utopia. Essa utopia sem a qual não há progresso."
Eugénio de Andrade

Florbela é um enternecedor e competente filme de Vicente Alves do Ó que acompanha a entrada no terceiro casamento de Florbela e o reencontro com o seu irmão Apeles.
Apesar de alguns tremeliques desnecessários da câmara numa ou outra cena, o argumento é sublime e os actores são supremos, tornando este filme uma obra apaixonante - palavra especial para Dalila Carmo que dá vida de forma soberba a essa complexa e contraditória mulher.

Bela sofria dum mal de que sofrem muitos seres humanos, particularmente as mulheres. Um mal que nas perfeitas e sintéticas palavras de António Alçada Baptista em O Riso De Deus se resume a:

“Tu terás de descobrir que o homem da tua vida, o outro que te provoca para a aventura de viveres e te conheceres, afinal está dentro de ti e é com ele que tu terás de procurar a tua unidade e a imersão no mistério de viver. Os outros, talvez sejam só os nossos companheiros de jornada que nos podem ajudar e acarinhar mas com quem não podemos criar dependências numa coisa tão importante como é a descoberta do sentido da vida.”

É essa dependência dos seres humanos que nos rodeiam que nos dá vida e nos mata.
Florbela era um espírito inquieto, numa incessante busca, com sede e fome de infinito, uma tentativa de "condensar o mundo num só grito". Há pessoas assim: incansáveis na sua busca interminável de condensar o mundo, de se fundirem com a vida. São naturalmente seres incompreendidos e agitados.

Quando escrevi sobre o Extremely Loud & Incredibly Close referi que o protagonista conclui que é melhor uma desilusão do que nada. E tal verifica-se porque o conhecimento é uma dádiva. E é melhor conhecer do que desconhecer. Frequentemente se diz que os desconhecedores são mais felizes na sua inocência ou inconsciência forçada. Tal poderia ser verdade sob os padrões de felicidade dos "conscientes", mas como os padrões são diferentes não há comparação possível. Quem não sabe é como quem não vê. Por isso o sabedor, embora lhe seja mais dificil atingir uma felicidade ou uma existência tranquila, quando a atinge consegue níveis elevados, porque reconhece o seu valor e se a atinge apenas por instantes (como é frequente neste tipo de pessoas), esses instantes são mais recheados de intensidade do que vidas inteiras. E, por isso, gosto de pensar nestes seres de clarividência como seres alegres na sua eterna melancolia provocada pela incessante angústia do drama de se procurar respostas que se sabe não existirem: a grande utopia dos poetas.
Ou nas próprias palavras desta grande senhora "sou a que chamam triste sem o ser":

"Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho,e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ...

Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou!"

terça-feira, 13 de março de 2012

segunda-feira, 12 de março de 2012

Liberdade em Shawshank Redemption

Se eu tivesse de resumir o que é este filme para mim, acho que esta cena poderia exemplificar o que sinto.
Dusfrene sabe que não há maior liberdade do que a que trazemos cá dentro. É tão simples e verdadeiro, que nos esquecemos desta grande certeza todos os dias, sucessivamente.
E a liberdade nunca mais foi a mesma no cinema:

http://www.youtube.com/watch?v=hWUfFwoe8ko

domingo, 11 de março de 2012

A Magia Do Cinema

O cinema foi uma invenção magnífica. Já o disse antes, mas não me canso de me deslumbrar com esta maravilha e, consequentemente, de a enaltecer.
Imagino como terá sido a primeira projecção de cinema e deverá ter sido uma sensação única e incomparável. Embora em patamares diferentes, a primeira projecção de cinema seria como os primeiros homens que se aventuraram pelo mar desconhecido, quando o mundo era um enorme ponto de interrogação cheio de monstros ou lendas e a sua dimensão era absurdamente ignorada. Algo que nenhum de nós sabe o que é, porque vivemos com o cinema e, mais concretamente, com o seu parente doméstico desde que nos conhecemos. E, como tal, o hábito das imagens, das mais realistas às mais surreais, nos entrarem pelos olhos é já parte de nós.
Nunca saberemos o que é experienciar o mundo tal como se nos apresenta a invadir o nosso olhar através dum simples ecrã. Para nós é natural. Está enraizado. Visitar os locais é diferente de os ver no grande ecrã, mas desconfio que nada - quer do bom, quer no mau - nos deslumbrará da mesma maneira de como seria antes do cinema levar o mundo às pessoas.
Viajar no espaço, visitar o outro lado do mundo ou experienciar os mais diversos universos será certamente diferente do que ir ao cinema, mas já não tem aquele impacto de novidade, porque todas as experiências já as vivemos na sala da magia.
O cinema é o mais próximo dos sonhos que se pode estar.

sexta-feira, 9 de março de 2012

quarta-feira, 7 de março de 2012

Rango


Antes de mais convém referir que, apesar da bonecada, este filme não é para crianças (se repararmos que é de Gore Verbinski e interpretado por Johnny Depp, é fácil perceber porquê).
Posto isto, convém salientar que este foi o filme que ganhou o Óscar de Melhor Filme Animado do Ano - algo que parece inevitável depois de o vermos.
Rango é uma divertidíssima aventura que tem lugar no seio do deserto americano, onde a escassez de água é uma ardente realidade.
O protagonista é súbita e inesperadamente largado no meio do nada. A partir daí tudo pode acontecer e os principais personagens desérticos estão lá.
Rango está à procura de alguma coisa e, pelo caminho, encontra-se a si próprio. É sempre mais fácil encontrarmo-nos longe de tudo o que nos é familiar. Longe de tudo o que esperam de nós. Longe de todas as expectativas enraizadas. É, talvez por essa razão, que as viagens são sinónimo de libertação e tranquilidade, sentimo-nos livres e em paz, quando estamos longe das amarras quotidianas que nos (auto) impõem.
É quando começamos a percepcionar que as pessoas de quem nos sentimos mais próximos (ou com quem nos sentimos menos sós) são as pessoas com quem somos realmente nós próprios (ou com quem sentimos que estamos mais próximos do nosso ser).
E é, sobretudo, nos momentos adversos que nos confrontamos e nos conhecemos ou (re)encontramos.
E que mais belo e adequado lugar para essa epifania do que no sítio da ausência de tudo, a terra do nada: o deserto.

terça-feira, 6 de março de 2012

If You Ever Get Lonely


"I always tell the girls, never take it seriously, if ya never take it seriosuly, ya never get hurt, ya never get hurt, ya always have fun, and if you ever get lonely, just go to the record store and visit your friends."
Penny Lane (Kate Hudson) - Almost Famous

segunda-feira, 5 de março de 2012

Extremely Loud & Incredibly Close


Este tema será sempre actual: a perda dos entes queridos e a maneira de se lidar com essa inevitabilidade.
Antes de mais é de felicitar o excelente trabalho de todos os protagonistas, nomeadamente o extraordinário Thomas Horn e o discreto, mas fundamental Max von Sydow. É um filme que vive sobretudo das interpretações, no longo caminho de superação dum evento traumático, um dos momentos mais marcantes da história contemporânea ocidental: o 11 de Setembro de 2001, o dia em que tudo mudou.

As pessoas procuram respostas, procuram sentidos, porque 1 + 1 = 2; mas a vida não são equações e nem sempre há explicação para os acontecimentos com que somos confrontados.
A perda, a ausência é sempre dificil de superar. Aceitar essa irreversibilidade é, talvez, o grande segredo da vida.
Mas nesse processo de aceitação, nessa busca de saber como lidar com o tema, tentamos desesperadamente encontrar explicações, onde elas não existem. Tentamos encontrar uma lógica, uma razão, algo que nos demonstre o porquê das coisas serem como são. É uma busca que poderá nunca cessar.

"Ne cherche pas les "parce que" - en amour il n'y a pas de "parce que", de raison, d'explication, de solutions." Anais Nin

A vida é feita de pessoas que amamos, pessoas que nos rodeiam, pessoas que nos marcam, que nos ajudam a formar a nossa identidade. E, naturalmente, quando a vida nos arranca essas pessoas é dificil superar esse brusco acontecimento. Nessa busca de resposta vamos encontrando pequenas maneiras de lidar com o assunto. Nas palavras do protagonista, uma desilusão é melhor do que nada. Pelo menos tem-se uma resposta, uma fronteira, algo que nos marque o caminho e nos permita encerrar um assunto e prosseguir a longa caminhada, algo que nos dê um certo desprendimento em relação a tudo, porque só assim conseguiremos viver sem buscar incessantemente respostas e justificações que não existem.

"E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente. Apenas nos iludimos julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros. Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram. Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu para sempre."
Miguel Sousa Tavares

domingo, 4 de março de 2012

Shame


Essencialmente este é um filme sobre solidão.
O sexo é o escape do protagonista. Um contacto físico, seja ele qual for, como forma de aplacar a enorme angústia e agitação interior, nem que seja por um único momento.
Fassbender tem aqui um papel notável, depois dum ano em cheio, em que foi um jovem Magneto e um dividido Jung. Já o  haviamos visto anteriormente no papel dum dos aliados em Inglorious Bastards. Mas aqui, Fassbender demonstra toda a sua plenitude e capacidades como actor (embora o seu sorriso incrível não seja tão frequente, como noutros papéis).
O sexo é o tema, a nudez é explícita e a propósito desta ousadia o actor refere numa entrevista aquilo que é também a minha percepção do tema: "metada do mundo tem um pénis e outra metade já viu um", ou seja, como podem os meios sociais estar carregados de violência, como se se digerisse isso ao pequeno-almoço e a simples visão dum pénis ser constrangedora?
Esta indignação relembra-me outro filme marcante de nome The People Vs Larry Flynt, em que numa das cenas Flynt (um brilhante Woody Harrelson) faz uma eloquente demonstração entre o que é mais vil: a violência ou o sexo?
Carey Mulligan acompanha Fassbender em Shame e compõe também aqui uma complexa e brilhante personagem.
Brandon é viciado em sexo e, como tal, tem vergonha. Tem vergonha da sua condição e vício. Sente-se sozinho, alienado do mundo e essa frustração compele-o a fomentar e alimentar essa espiral viciante de busca de contacto físico, na ânsia de colmatar a enorme tristeza interior. Este é, aliás, um dos grandes males da sociedade actual, a busca desenfreada de todo o tipo de prazeres e contactos, como forma de compensação duma certa inquietude interior ou como colmatação da  solidão.
Não é por acaso que Brandon escuta essencialmente música clássica, nomeadamente Bach, num contraste perfeito com a serenidade exterior.
Shame é um filme brutalmente real, um filme para adultos, como há muito não se via um. Esta é uma das maravilhosas capacidades do cinema, expor a realidade nua e crua, sem pudor, nem omissão.

sábado, 3 de março de 2012

The Best And The Worst


"A family crisis brings out the best and the worst in every member of the family."
Brick Pollit (Paul Newman) - Cat On A Hot Tin Roof

sexta-feira, 2 de março de 2012

Sedução em The Prize

Cena mítica em que Paul Newman e Elke Sommer se envolvem nesse delicioso filme de acção e comédia de nome The Prize: uma curiosa investigação pulverizada de momentos hilariantes e apimentada pelos diálogos escaldantes dos protagonistas.
"- I though an iceberg never melt.
- I though Sweden was neutral."

quinta-feira, 1 de março de 2012

Bruna Surfistinha


Para quem não sabe, este filme é baseado na história verídica de Bruna, uma garota de programa que virou sucesso ao publicar num blog as suas experiências.
O filme é protagonizado por Deborah Secco que consegue captar de forma magistral as angústias e dilemas duma personagem tão complexa como Bruna, aliás Raquel, que é acompanhada desde a partida de casa até ao início duma nova vida, passando por todos os momentos marcantes do seu percurso, desde o topo até ao fundo. O filme é divertido e realista, mas tem algumas cenas bastante pesadas, que nos relembram que a prostituição é um tema delicado e triste, mas existe. Fechar os olhos, virar as costas; é apenas uma maneira de não ter de lidar com o assunto.
Há um momento em que a protagonista, como que se confessando ao espectador, revela que se questiona muitas vezes sobre todas as esposas, o que elas estarão fazendo, a inocência da vida que levam, não imaginando sequer o que se passa, a meio dum dia calmo e banal, com a pessoa com quem dividem a vida, a pessoa em quem mais confiam, a pessoa com quem partilham a intimidade. Essa confissão recordou-me a Séverine de Buñel (com as devidas diferenças), essa Belle De Jour magnificamente interpretada pela grande diva Deneuve.
Os segredos inconfessáveis, guardados no mais fundo da gaveta, repousados tranquilamente, inimaginados pela pessoa mais próxima, levando uma existência desligada da realidade, um mundo de inocência, num universo paralelo de confiança radiante. Desconhecendo que a proximidade é relativa e a intimidade é partilhada com outrém. Uma sociedade que teima em desviar o olhar, porque é mais fácil, mais simples, mais limpo, fingir que não existe.
A inocência perdida é irreversível e a confiança é irrecuperável.