sábado, 29 de outubro de 2011

Wall Street



Será que a ganância compensa?
Frequentemente se disse da religião ser o ópio do povo (citando Marx) e, sendo tal certo, não é menos verdade que o dinheiro é o motor do povo. Somos seus escravos desde o dia em que nascemos.
Esta excelente película aborda de forma sólida e coesa a insaciável busca de dinheiro. Conforme refere Michael Douglas na soberba interpretação de Gordon Gekko: “greed is good”. Mais do que ser ganancioso, o mote do filme debruça-se sobre uma outra necessidade: ser egoísta. É, acima de tudo, esse o ensinamento que Douglas parece transmitir a um jovem Charlie Sheen. Terá Gekko razão?
Nos dias que correm e, considerando todo o panorama histórico e actual das sociedades ocidentais, duma maneira geral, a corrupção, ganância e egoísmo parecem prevalecer, sob o desejo/necessidade/vontade de contribuir de forma generosa para o desenvolvimento da comunidade em que se está inserido. E mais do que prevalecer, a famosa greed de que Gekko falava parece vencer num mundo cada vez mais subjugado ao poder do capital, em que se vende o que de mais precioso existe: o tempo.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Before Sunrise




Recordo-me de me apaixonar por este filme à primeira vista.
Nunca o esqueci e, embora já não o experiencie há uns anos, é uma película à qual voltei muitas vezes e que ficou marcada cá dentro de forma especial.
O encontro entre duas pessoas é retratado de forma encantadora e apaixonante, sendo as personagens belissimamente interpretadas por Ethan Hawke e Julie Delpy.
Poderá um encontro casual entre duas pessoas, durante apenas um breve momento, mudar o resto das suas vidas? Eis a promissora premissa do filme.
Os protagonistas encontram-se num comboio (lugar já de si carregado dum romantismo único), proporcionando-se que a noite (que se avizinha) seja passada a explorar Viena.
Há quem sinta que há lugares mágicos, há quem sinta que são as pessoas que fazem os lugares; mas talvez seja no encontro entre estas duas crenças que nasce a magia.
Viena é uma das cidades mais majestosas e belas da Europa. Ao longo do filme os carismáticos protagonistas vão percorrendo diversos pontos míticos da cidade, à medida que a conversa flui de forma cada vez mais e mais intensa. A simbiose entre a imagem e o som, entre o lugar que enquadra o acontecimento e o fluir da conversa, é duma perfeição esmagadora. Há momentos únicos ao longo do filme, carregados duma simplicidade que transmite de forma perfeita a cumplicidade das personagens, nomeadamente o telefonema ou a cabine musical.
O filme transmite toda a imponência da imprevisibilidade, através dos acontecimentos, temáticas abordadas e pessoas que se vão cruzando com a história. Respira-se também um certo misticismo desde o poeta de rua à cigana vidente.
A grandiosidade do filme revela-se sobretudo na sequência final. A câmara mostra cada um dos locais que anteriormente estavam recheados de risos, conversas e segredos. Imagem após imagem percorremos cada um dos cenários que adornaram a história, cada um dos recantos por onde os protagonistas haviam passado há apenas instantes, como se, após essa vivência que testemunhámos, cada um desses lugares (agora vazios) ganhasse vida própria.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Seldom Awakens


"I'll miss the sea, but a person needs new experiences. They jar something deep inside, allowing him to grow. Without change something sleeps inside us, and seldom awakens. The sleeper must awaken."
Duke Leto Atreides (Jurgen Prochnow) - Dune

domingo, 16 de outubro de 2011

Passeio de Bicicleta: Butch Cassidy and The Sundance Kid



Um dos momentos mais hilariantes do cinema.
Paul Newman e Katharine Ross protagonizam uma das cenas mais emblemáticas de Butch Cassidy and The Sundance Kid ao som da memorável Raindrops Keep Fallin’ On My Head.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Jeux D'Enfants



Em inglês chamaram-lhe Love Me If You Dare e em português Amor Ou Consequência.
Recordo-me de arrastar dois grandes amigos meus para irem ao cinema ver esta película. 
Um dos filmes mais originais e deliciosos que experiencei. A premissa é aliciante: duas crianças e uma caixa: quem a possui desafia a outra a realizar uma determinada tarefa. Julien e Sophie (brilhantemente interpretados por Guillaume Canet e Marion Cotillard) vão crescendo agarrados a esse jogo insano, que se vai tornando cada vez mais obsessivo e desafiante.
À medida que o grau de exigência aumenta, parecem tornar-se mais dependentes da caixinha de surpresas.
Este filme tem uma das sequências mais geniais a que alguma vez assisti. Existe um determinado período de tempo durante o qual os protagonistas não se vêem (e em que (como em todos os filmes) esse tempo se resume a uns segundos com uma musiquinha). Após esses instantes cinematográficos (longos e arrastados momentos na vida real) Julien relembra tantas e tantas coisas que se passaram nesse tempo, tantas e tantas coisas que povoaram a sua vida, tantas e tantas coisas que fez, tantos e tantos pensamentos que teve, tantas e tantas sensações que sentiu; toda uma amálgama de acontecimentos que teve lugar durante esse período de tempo. Porém, e apesar de tudo o que viveu, apenas nesse momento, nesse precioso instante em que entrou de novo no jogo sente que está de novo a viver. Sente-se vivo, como não sentia desde o último desafio. Agora percebe que toda essa panóplia de momentos acumulados a que se resumia a sua vida eram apenas uma distracção, na imperturbável espera até esse instante em que se sentia despertar do sono profundo que vivera todo esse tempo. No fundo sabia-o, mas agora sente-o, em todas as suas veias, em todos os seus poros, com toda a força que o atravessa. E essa sensação é magnificamente transmitida pelo filme. Essa sensação que assalta Julien de que só esse momento importa, como se o ontem e o amanhã não existissem, nunca tivessem existido. Como se só naquele momento se sentisse verdadeiramente em comunhão com a vida e o universo. É uma cena duma intensidade feroz. Há momentos assim: em que tudo o que interessa se nos oferece. Momentos em que todos os passos anteriores parecem apenas servir para culminar nesse instante. Momentos em que o que sentimos se sobrepõe ao que pensamos, porque em última instância apenas isso importa, em última instância; como dizia esse magnífico poeta que Pessoa criou e baptizou de Ricardo Reis:

“O meu olhar é nítido como um girassol. 
Tenho o costume de andar pelas estradas 
Olhando para a direita e para a esquerda, 
E de, vez em quando olhando para trás... 
E o que vejo a cada momento 
É aquilo que nunca antes eu tinha visto, 
E eu sei dar por isso muito bem... 
Sei ter o pasmo essencial 
Que tem uma criança se, ao nascer, 
Reparasse que nascera deveras... 
Sinto-me nascido a cada momento 
Para a eterna novidade do Mundo... 

Creio no mundo como num malmequer, 
Porque o vejo. Mas não penso nele 
Porque pensar é não compreender... 

O Mundo não se fez para pensarmos nele 
(Pensar é estar doente dos olhos) 
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo... 

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos... 
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é, 
Mas porque a amo, e amo-a por isso, 
Porque quem ama nunca sabe o que ama 
Nem sabe por que ama, nem o que é amar... 
Amar é a eterna inocência, 
E a única inocência não pensar...”

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

The Tree Of Life


A aceitação é a chave de tudo. Embora esta frase simples seja aparentemente fácil de compreender e realizar é talvez o grande dilema com que nos debatemos até ao último instante.
Mallick traz-nos com esta obra-prima mais um poema em forma de filme, alternando imagens de infinita beleza dum universo profundamente imprevisível e poderoso, com a história duma família, que nos leva ao questionamento do nosso próprio percurso, do sentido do todo, da casualidade do mundo e do poder da natureza. Há nitidamente duas forças antagónicas sobre as quais o universo assenta: a natureza e a graça, sendo cada uma representada por um dos progenitores da família (encantador trabalho de Jessica Chastain e Brad Pitt).
Há aqui um desespero face à vida, no confronto com o percurso que ela própria vai desenhando para atravessarmos. Uma sensação de inutilidade no todo: nos pequenos dramas diários, nas grandes alegrias, na rotina sufocante, no conjunto da existência. Há, simultaneamente também, a sensação de dádiva do dia-a-dia, como se cada novo amanhecer fosse algo único provocado pela casualidade que pode ou não vir a repetir-se.
Deus estará porventura no silêncio, na aceitação, na luz. A luz que nos guia e que existe em cada um de nós, frequentemente sufocada pela escuridão a que nos reservamos. Talvez porque essa mesma luz é também ela um reflexo da fugacidade de tudo, que o Homem, como ser pensante, tem dificuldade em aceitar – recusa essa certeza apoteótica.
A permanência é quase uma necessidade intrínseca da condição humana e a libertação é alcançada com a (difícil e dolorosa) aceitação da árvore da vida.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Os Solitários Do Cinema



Os solitários do mundo cinematográfico apaixonam-nos: temos o eterno James, o divertido Indy, o ganancioso Gordon, o mafioso Michael, o politicamente incorrecto Tony, o aparentemente carrancudo Don, o resistente John, o atormentado Brick, o insubordinado Luke, entre muitos e tantos outros que povoam desde sempre o nosso imaginário.
É no seu cepticismo, na sua descrença que o mundo se revê. Personagens de carácter incerto e de falsa seriedade, interrompida frequentemente, pelo certeiro (e algo cínico) sentido de humor acutilante.
O solitário tem fantasmas, tem segredos, não sabe quem é, mas tenta descobri-lo (um pouco mais) na interacção com os que o rodeiam. E, afinal, o que é a vida senão isso? O que é a vida senão descobrirmo-nos, constantemente, no contacto com os outros? Socializar: veículo único de chegarmos ao fundo de nós próprios e, em antítese, expoente máximo de solidão. É no olhar dos outros que nos revemos ou nos ausentamos. É no reflexo desse olhar que vemos o conforto dum espelho ou a crueza duma parede. É algo de que, simultaneamente, se depende e se abomina. E é nesse curioso jogo que o solitário se revela, um pouco mais, a quem realmente importa: ele próprio.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Comentário de Henrique Raposo

Ao deparar-me com este texto: http://aeiou.expresso.pt/comentario-de-henrique-raposo-sobre-as-pontes-de-madison-county=f678125 não podia deixar de o partilhar neste cantinho.


"As Pontes de Madison County" é uma das maiores histórias de amor do cinema contemporâneo. Ponto.

Está lá em cima, no Olimpo romântico, junto de "Depois do Ódio", "Inimigos Públicos", "Miami Vice", "Disponível para Amar" ou "Brokeback Mountain". Nesta história, um fotógrafo de Washington (Clint Eastwood/Robert) e uma dona de casa do Iowa (Meryl Streep/Francesca) apaixonam-se de forma terminal.

E, como não podia deixar de ser, o filme é capturado pela luz de Meryl Streep. Nunca o adultério foi tão bonito. Sem a presença magnética de Streep, este filme seria uma xaropada venezuelana. Com outra atriz, este argumento fabricaria uma coisa medíocre. Com Streep, este argumento originou um aríete que nos arromba sem pedir licença.

Através de Streep, esta Francesca do Iowa de 1965 passa a ser uma heroína. No fundo, Meryl Streep prova que o melodrama pode partir a loiça toda. Porque, de facto, o material melodramático não é mau (ou bom) à partida.

Tudo depende da forma como é trabalhado. E nesse processo de depuração é fundamental a presença de uma atriz com amplitude térmica. Em "As Pontes de Madison County", Streep consegue tocar no oito e no oitenta, como só ela sabe. Num momento, Francesca parece uma adolescente em pulgas perante o citadino que vem fotografar as pontes lá da terra.

Porém, segundos depois, Streep já é a balzaquiana fogosa. Neste carrossel emocional, Streep aparece com os olhos da esperança, para logo a seguir surgir com o fantasma do desespero na face. Mas porquê desespero? Por que razão Streep não deixa a família e o marido para abraçar o amor da sua vida? Uma leitura superficial diria que Eastwood está a questionar a família americana e que Francesca é uma mulher camiliana presa nas convenções sociais. Eu prefiro ver as coisas de outra forma.

Francesca não abandona o marido porque a bondade não merece ser magoada. Esta mulher está entre o amor e a bondade. Ela sabe que a bondade existe. O marido e os filhos são a prova disso. E, no momento decisivo, Francesca recusa destruir essa bondade. O inferno não é a presença do mal. O inferno é estar entre dois amores, entre duas versões do bem, entre os melhores anjos da nossa natureza."

Comentário publicado no Expresso a 1 de Outubro de 2011, por Henrique Raposo




All Those Moments Will Be Lost In Time


"I've seen things you people wouldn't believe. Attack ships on fire off the shoulder of Orion. I've watched C-beams glitter in the dark near the Tannhauser Gate. All those moments will be lost in time, like tears in the rain. Time to die."
Roy Batty (Rutger Hauer) - Blade Runner

domingo, 9 de outubro de 2011

A Música No Cinema



Embora não negue que o cinema começou mudo e existem grandes filmes sem som (tenho particular carinho pelo A Caixa de Pandora (Die Büchse der Pandora) de Pabst, com uma apaixonante Louise Brooks), creio que grande parte do magnetismo do cinema vem dos sons que acompanham as imagens.
A música (ou a ausência da mesma) é uma peça chave para definir toda uma cena.
A música é a única coisa do mundo que consegue – instantaneamente – que o nosso humor melhore (para além de nós próprios, claro) e, nesta base, a música é definidora das sensações que as imagens nos transmitem.
A banda-sonora dum filme é algo único e marcante; algo que nos apaixona e nos acompanha, muito depois da experiência visual da obra.
As imagens ganham outra dimensão quando acompanhadas duma melodia; tal como um dia cinzento parece ganhar mais cor, quando escolhemos uma música animada.
Quantas e quantas vezes não fico siderada pela melodia dum determinado filme, escutando-a dias a fio, como que revivendo uma e outra vez a experiência cinematográfica.
O que seria do dramatismo de The English Patient sem aqueles marcantes acordes de Yared; ou do misto de descoberta e ternura do voyeur de Maléna sem aquela maravilhosa melodia de Morricone; ou da violência acutilante de A Clokwork Orange sem a 9ª Sinfonia (ou por outras palavras: a 9ª Sinfonia nunca mais foi a mesma); ou do impacto de qualquer cena Tarantinesca sem as loucas músicas escolhidas a dedo? (Isto só para dar alguns exemplos).
O poder da música é reconhecido em qualquer lugar, em qualquer cultura, em qualquer crença. A música é uma maneira do ser humano se expressar. Pode ser uma forma de amar, pode ser uma forma de revolta, pode ser uma forma de cura, pode ser a maneira de dizermos o que não se consegue ouvir de outra forma. A música é uma linguagem universal e, como tal, é veículo imprescindível no cinema. A música é uma poderosa mensageira e consegue transportar-nos para um mundo de fantasias, pode levar-nos a outras épocas, pode desencadear as mais variadas sensações.
O poder da música é infinito e, por isso, a música é decisiva para a grandiosidade dum filme.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

The Biggest Of All Differences


"The big difference between people is not between the rich and the poor, the good and the evil. The biggest of all differences between people is between those who have had pleasure in love and those who haven't."
Chance Wayne (Paul Newman) - Sweet Bird Of Youth

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Malèna




Este filme marcou-me profundamente.
Vi-o apenas uma vez, mas recordo diversos momentos, nomeadamente a delicadeza desesperante do momento final.
É um filme que mostra muito bem a injustiça, que é sempre e preferencialmente cometida, contra as mulheres. Jamais esquecerei a angústia dos olhos da protagonista, forçada a uma vida indesejada, por e para todos. Jamais apoiada seja por quem for, apenas como imagem de desejo para o sexo masculino e imagem de inveja para o sexo feminino. Perdida, por ausência dum elemento do sexo oposto, elemento esse que na figura de marido ou de pai era o representante da sua honra e prestígio. Porque uma mulher sozinha jamais pode atingir esse estatuto; sendo alvo de selvagem crueldade, sobretudo do sexo feminino.
É um filme que mostra bem a beleza do corpo feminino na imagem do desejo incarnada por Monica Belucci (e magistralmente filmada por Giuseppe Tornatore). Cada contorno do corpo feminino, cada linha do rosto, a maneira como o cabelo longo cai e esvoaça, a maneira como os lábios se entreabrem, a maneira como os seios parecem querer revelar-se, a maneira como os tecidos acariciam a pele, a maneira como a roupa aconchega cada pedaço de carne.
É um filme que mostra bem a inocência em todo o seu esplendor e os primeiros sinais duma juventude ardente, dominada pelos calores da puberdade. A passagem de menino a homem, em todas as suas idiossincrasias (numa deliciosa interpretação de Giuseppe Sulfaro).
É um filme que mostra bem que são as memórias jovens que nos marcam de forma mais profunda e definitiva. Que permanecem na mente dum modo assombroso na sua plenitude e realismo.
É um filme que mostra que amor e desejo andam de mãos dadas e que os primeiros sentimentos têm a força de marcar uma vida.
E, tudo isto, acompanhado duma das mais belissímas bandas-sonoras de sempre (ou não fosse Ennio Morricone um dos maiores génios neste campo).
Sendo certo na vida, apenas a morte, há momentos que permanecem connosco até esse dia, que fazem parte de nós e nos definem duma maneira muito mais decisiva do que alguma vez imagináramos. Momentos esses que, podendo ser dependentes de outrem, nos marcam de forma única, nem mesmo o objecto de desejo imaginando. Ficam, independentemente do nome, do rosto, do timbre, dos contornos, dos receios, dos desejos, dos sonhos, dos segredos serem lembrados ou até mesmo conhecidos.

sábado, 1 de outubro de 2011

Eternal Sunshine Of The Spotless Mind



Até que ponto vale a pena preservarmos determinadas memórias que nos levam a um determinado pensamento que, por sua vez, dá origem a um certo sentimento? Ou por outras palavras até que ponto vale a pena escolhermos viver determinado momento, quando sabemos exactamente como vai terminar?
A premissa deste filme é curiosa: um homem descobre que a ex-namorada apagou da sua mente as memórias da relação de ambos e, face a este facto, decide ele mesmo apagar da sua memória as recordações desse relacionamento.
Ao longo do filme acompanhamos o protagonista (brilhantemente interpretado por Jim Carrey) a percorrer na mente, uma e outra vez, cada pedaço do que viveu com a ex-namorada (a sempre magnífica Kate Winslet). A memória tenta preservar cada uma dessas lembranças, tentando escapar ao perscrutar da mente (e, consequente, extinção da recordação dessas vivências). Para além do filme estar belissimamente construído e  o leque de actores secundários ser poderoso, levanta-nos questões filosóficas de elevado interesse.
Quantas e quantas vezes não gostaríamos de apagar da mente determinados episódios que experienciamos? No caso particular do que o filme retrata (a relação amorosa) quantas vezes não desejámos que existisse um sistema de controlo cerebral (uma espécie de interruptor) que nos permitisse desligar. Porquê que a memória afecta tanto as nossas emoções? Porquê que um simples pormenor, como um aroma ou uma palavra, conseguem relembrar algo adormecido? Porquê que um pensamento faz despoletar todo um momento passado, quase como se o experienciássemos de novo? Porquê que as vivências agradáveis são com frequência relembradas com amargura ou tristeza?
Bom, para se perceber as interligações cerebrais de memória, pensamento, emoções, recomendo a leitura de António Damásio, particularmente O Livro Da Consciência.
A última questão prende-se com o facto de a vida ser uma combinação de estados que temos de atravessar ou, nas palavras de Anais Nin: "A vida é um processo e uma combinação de estados que temos de percorrer. Onde as pessoas falham é que querem eleger um estado e permanecer nele." 
Muitas vezes quando atravessamos um determinado estado positivo, gostaríamos de permanecer nesse mesmo estado e, consequentemente, quando o incessante movimento da vida segue o seu rumo, custa-nos prosseguir e queríamos assumir como permanente o que se impõe como impermanente, queríamos permanecer num estado, quando ele é apenas isso mesmo: um estado (e, por inerência, passageiro). Tal é tanto mais notório quanto mais apegados estamos à nossa condição (que é ela mesma em si própria impermanente) e, por consequência, às pessoas que se cruzam connosco, sobretudo nos caminhos do coração. Será, porventura, o truque viver em equilíbrio conseguindo vivenciar intensamente e com plenitude cada estado, assumindo e aceitando que outro posteriormente lhe tomará o lugar? Possivelmente.
No entanto, o ser humano tem enorme dificuldade em libertar-se dessa inércia ao agradável, por isso este filme é dum enorme brilhantismo e relembra-me um poema de Carlos Drummond de Andrade:
"Destruição
Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.
Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.
Nada, ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.
E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir mas o existido
continua a doer eternamente.”