Até que ponto vale a pena preservarmos determinadas memórias que nos levam a um determinado pensamento que, por sua vez, dá origem a um certo sentimento? Ou por outras palavras até que ponto vale a pena escolhermos viver determinado momento, quando sabemos exactamente como vai terminar?
A premissa deste filme é curiosa: um homem descobre que a ex-namorada apagou da sua mente as memórias da relação de ambos e, face a este facto, decide ele mesmo apagar da sua memória as recordações desse relacionamento.
Ao longo do filme acompanhamos o protagonista (brilhantemente interpretado por Jim Carrey) a percorrer na mente, uma e outra vez, cada pedaço do que viveu com a ex-namorada (a sempre magnífica Kate Winslet). A memória tenta preservar cada uma dessas lembranças, tentando escapar ao perscrutar da mente (e, consequente, extinção da recordação dessas vivências). Para além do filme estar belissimamente construído e o leque de actores secundários ser poderoso, levanta-nos questões filosóficas de elevado interesse.
Quantas e quantas vezes não gostaríamos de apagar da mente determinados episódios que experienciamos? No caso particular do que o filme retrata (a relação amorosa) quantas vezes não desejámos que existisse um sistema de controlo cerebral (uma espécie de interruptor) que nos permitisse desligar. Porquê que a memória afecta tanto as nossas emoções? Porquê que um simples pormenor, como um aroma ou uma palavra, conseguem relembrar algo adormecido? Porquê que um pensamento faz despoletar todo um momento passado, quase como se o experienciássemos de novo? Porquê que as vivências agradáveis são com frequência relembradas com amargura ou tristeza?
Bom, para se perceber as interligações cerebrais de memória, pensamento, emoções, recomendo a leitura de António Damásio, particularmente O Livro Da Consciência.
A última questão prende-se com o facto de a vida ser uma combinação de estados que temos de atravessar ou, nas palavras de Anais Nin: "A vida é um processo e uma combinação de estados que temos de percorrer. Onde as pessoas falham é que querem eleger um estado e permanecer nele."
Muitas vezes quando atravessamos um determinado estado positivo, gostaríamos de permanecer nesse mesmo estado e, consequentemente, quando o incessante movimento da vida segue o seu rumo, custa-nos prosseguir e queríamos assumir como permanente o que se impõe como impermanente, queríamos permanecer num estado, quando ele é apenas isso mesmo: um estado (e, por inerência, passageiro). Tal é tanto mais notório quanto mais apegados estamos à nossa condição (que é ela mesma em si própria impermanente) e, por consequência, às pessoas que se cruzam connosco, sobretudo nos caminhos do coração. Será, porventura, o truque viver em equilíbrio conseguindo vivenciar intensamente e com plenitude cada estado, assumindo e aceitando que outro posteriormente lhe tomará o lugar? Possivelmente.
No entanto, o ser humano tem enorme dificuldade em libertar-se dessa inércia ao agradável, por isso este filme é dum enorme brilhantismo e relembra-me um poema de Carlos Drummond de Andrade:
"Destruição
Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.
Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.
Nada, ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.
E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir mas o existido
continua a doer eternamente.”