sábado, 26 de outubro de 2013

Sugestão para Filme ou A Minha História de Amor com Chico



Gosto de achar que o Chico é só meu, mas na verdade Chico Buarque é uma maravilha do Brasil, uma maravilha da língua portuguesa, é uma maravilha do mundo. Chico é o maior poeta vivo. A sua música influenciou milhões de pessoas e toca várias gerações.

A encantadora doçura das suas melodias é universal. Já a força avassaladora das suas letras está apenas reservada para quem compreende a língua portuguesa.

A língua portuguesa tem a particularidade de ser rica e vasta e o brasileiro tem um sotaque irresistível que torna o idioma muito mais aberto, mais carinhoso. É a ternura vocal que invade o idioma quando se escuta o brasileiro falando português.

Há sempre algo que fica perdido na tradução quando se tenta reproduzir noutros idiomas certas expressões. A ideia pode transparecer, mas a beleza daquelas palavras ou sons fica mais pobre, mais despida da sua essência.



Chico Buarque de Holanda compôs músicas inacreditáveis. Os versos que dão vida às suas letras são duma grandiosidade simples, apenas igualada pelas singelas melodias que normalmente as acompanham.
Chico não tem uma voz possante, a sua voz é muitas vezes como um tímido passarinho que soa gentilmente, quase como se murmurasse. Mas é justamente essa doçura, esse despretensiosismo, que realça os versos, tornando-os descomunais.


A primeira vez que ouvi Chico já estava na faculdade: caloirissíma. Decidi requisitar uns CDS ao vivo (álbum duplo) na biblioteca desse mui nobre lugar. Apaixonei-me! Essa história de amor dura até hoje. A capacidade que Chico tem de tocar o coração humano com as suas letras e melodias é inexplicável, apenas comparada à força que o amor exerce sobre os sentidos.


Chico fala sobre a revolta de um povo:

"Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
(...)
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente"



Sobre a injustiça:

"Pela varanda
Flores tristes e baldias
Como a alegria
Que não tem onde encostar
E aí me dá uma tristeza
No meu peito
Feito um despeito
De eu não ter como lutar
E eu que não creio
Peço a Deus por minha gente
É gente humilde
Que vontade de chorar"



Sobre a alegria e alívio que a distracção carnavalesca traz consigo:

"Dormia
A nossa pátria mãe tão distraída
Sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transações

Seus filhos
Erravam cegos pelo continente
Levavam pedras feito penitentes
Erguendo estranhas catedrais
E um dia, afinal
Tinham direito a uma alegria fugaz
Uma ofegante epidemia
Que se chamava carnaval
O carnaval, o carnaval
(Vai passar)"



Sobre o amor insubstituível que se tem pela pátria:

"Quando eu morrer
Cansado de guerra
Morro de bem
Com a minha terra"


Letras que lhe valeram o exílio, numa época em que o Brasil era dominado a ferro e fogo.



Canta sobre o malandro:

"Eu fui fazer um samba em homenagem
à nata da malandragem, que conheço de outros carnavais.
Eu fui à Lapa e perdi a viagem,
que aquela tal malandragem não existe mais."



Sobre a rotina:

"Todo dia eu só penso em poder parar;
Meio-dia eu só penso em dizer não,
Depois penso na vida pra levar
E me calo com a boca de feijão."


E sobre todos os contraditórios sentimentos que assolam quem vive.



Sobre a mulher que passa:

"Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão."



Sobre o João e Maria:

"E pela minha lei
A gente era obrigado a ser feliz
E você era a princesa que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar
Que andava nua pelo meu país

Não, não fuja não
Finja que agora eu era o seu brinquedo
Eu era o seu pião
O seu bicho preferido
Vem, me dê a mão
A gente agora já não tinha medo
No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido."



Sobre a separação:

"Trocando em miúdos, pode guardar
As sobras de tudo que chamam lar
As sombras de tudo que fomos nós
As marcas de amor nos nossos lençóis
As nossas melhores lembranças

Aquela esperança de tudo se ajeitar
Pode esquecer
Aquela aliança, você pode empenhar
Ou derreter

Mas devo dizer que não vou lhe dar
O enorme prazer de me ver chorar
Nem vou lhe cobrar pelo seu estrago
Meu peito tão dilacerado"



Sobre a traição:

"Te perdôo
Por ergueres a mão
Por bateres em mim

Te perdôo
Quando anseio pelo instante de sair
E rodar exuberante
E me perder de ti
Te perdôo
Por quereres me ver
Aprendendo a mentir (te mentir, te mentir)"



Sobre o que não se pode explicar por palavras:

"Me escutas, Cecília?
Mas eu te chamava em silêncio
Na tua presença
Palavras são brutas

Pode ser que, entreabertos
Meus lábios de leve
Tremessem por ti"



Sobre o inexplicável percurso de quem ama:

"Ah, eu quero te dizer
Que o instante de te ver
Custou tanto penar
Não vou me arrepender
Só vim te convencer
Que eu vim pra não morrer

De tanto te esperar
Eu quero te contar
Das chuvas que apanhei
Das noites que varei
No escuro a te buscar
Eu quero te mostrar
As marcas que ganhei
Nas lutas contra o rei
Nas discussões com Deus
E agora que cheguei
Eu quero a recompensa
Eu quero a prenda imensa
Dos carinhos teus"


Sobre o desencontro:

"Não se afobe, não
Que nada é pra já
O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário
Na posta-restante
Milênios, milênios
No ar

E quem sabe, então
O Rio será
Alguma cidade submersa
Os escafandristas virão
Explorar sua casa
Seu quarto, suas coisas
Sua alma, desvãos

Sábios em vão
Tentarão decifrar
O eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas
Mentiras, retratos
Vestígios de estranha civilização

Não se afobe, não
Que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá
Se amarão sem saber
Com o amor que eu um dia
Deixei pra você"



Sobre os sentimentos violentos:

"Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir

Ah, se ao te conhecer
Dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir

Se nós nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir"



Sobre o desejo:

"O meu amor tem um jeito manso que é só seu
Que rouba os meus sentidos, viola os meus ouvidos
Com tantos segredos lindos e indecentes
Depois brinca comigo, ri do meu umbigo
E me crava os dentes"



Sobre as noites de samba e amor (particularmente belas na voz de Bebel Gilberto):

"Eu faço samba e amor até mais tarde
E tenho muito sono de manhã
Escuto a correria da cidade que arde
E apressa o dia de amanhã"




Como é que se pode dizer tanto com palavras tão simples, tão singelas, tão leves como um floco de neve a pousar num manto branco?

É difícil compreender a força da poesia, os efeitos que tem no coração humano. O deslumbramento que a beleza das palavras provoca na visão e nos ouvidos é quase tão arrebatadora como a força do olfacto ou do toque.

Um poeta assim só pode ter tido uma vida inspiradora. 
Porque não dedilhar esta dádiva no cinema?

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