quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Hugo

"Depois de em 1995 nos ter levado numa viagem pessoal pelo cinema americano, e de em 1999 o destino ter sido o cinema italiano, Scorsese convida-nos para uma terceira viagem. Desta vez vamos até Paris. E porquê Paris? Porque foi lá que nasceu o Cinema.
O filme abre com uma prodigiosa sequência, que nos faz sobrevoar a cidade-luz, entrar na estação onde decorrerá grande parte da acção, percorrê-la a grande velocidade, e encontrar o protagonista, Hugo Cabret (Asa Butterfield). Hugo tem 12 anos, é órfão, vem de uma família de relojoeiros, tem um talento natural para tudo o que seja mecânico e faz a manutenção de todos os relógios da estação. Hugo vive entre as suas paredes, nos seus lugares mais recônditos, e surge-nos escondido atrás de um dos relógios, observando sem ser observado, atento aos movimentos dos habitantes frequentes (lojistas) e ocasionais (passageiros) da estação. Numa atitude voyeurista que nos revela desde logo o tema principal do filme – o Cinema.
Estamos no início do século XX, no final dos anos 20. A Primeira Guerra Mundial é ainda uma ferida bem aberta. O Cinema é já uma realidade, produziu os seus primeiros heróis. Passaram-se cerca de 30 anos desde a primeira apresentação pública de Cinema, pelos irmãos Lumière. A sala escura tem já os seus primeiros aficionados, os primeiros cinéfilos, e Hugo é um deles. O pai de Hugo (Jude Law) apaixonou-se pela imagem em movimento desde que viu “La Voyage Dans La Lune”, um filme de 1902, do parisiense Georges Méliès. E partilhou com Hugo essa paixão, levando-o frequentemente ao Cinema, fazendo dessa partilha um dos alicerces da sua relação.
O pai de Hugo encontrou, no museu onde trabalhava, um misterioso autómato, um ser mecânico, que levou consigo. Depois da sua morte, Hugo abraça a tarefa que anteriormente partilhava com o pai – reparar o autómato, trazer de novo à vida o ser mecânico, revelar a mensagem que ele esconde. Um dos lojistas da estação, de nome Georges (Ben Kingsley), torna-se o seu maior adversário nessa missão, por razões que Hugo desconhece, apoderando-se de um caderno que contém informação preciosa.
Hugo vai encontrar uma preciosa aliada – Isabelle (Chloë Grace Moretz), também órfã, adoptada por Georges e pela sua mulher Jeanne (Helen McCrory) – que se torna sua companheira de aventuras. Isabelle nunca foi ao Cinema, um mal que Hugo se apressa a remediar. Não podendo comprar um bilhete, Hugo transporta Isabelle, clandestinamente, para a sala onde nascem os sonhos. Harold Lloyd subindo uma torre e pendurando-se nos ponteiros de um relógio, no filme “Safety Last!” (1923), são as primeiras imagens que Isabelle vê numa sala de cinema, fascinada.

Em contrapartida, Isabelle conhece um outro lugar mágico (mistura de “Ilha do Tesouro”, “Oz”, e outros locais fantásticos, nas palavras da própria Isabelle), que vai apresentar a Hugo - a livraria de Monsieur Labisse (Christopher Lee). Isabelle é uma ávida leitora, e Monsieur Labisse é o seu cúmplice.
O mundo de Hugo é pintado com cores frias. Na Paris que ele observa está sempre noite. Os lugares que ele habita são escuros, frios, sujos. É uma paisagem industrial, os fumos das caldeiras e das canalizações são omnipresentes. Hugo move-se entre peças e mecanismos de relógios, com as suas ferramentas. Vive na Paris dos anos 20 do século XX, mas parece ter saído dos livros de Charles Dickens. Pela estação circulam outros órfãos, que trabalham desde muito cedo, mendigam ou roubam, tentando fugir a uma alternativa que se lhes apresenta ainda mais hostil – o orfanato. O inspector da estação, Gustav (Sacha Baron Cohen), também ele crescido num orfanato, persegue impiedosamente as crianças que vagueiam sozinhas, para as entregar a esse destino indesejado. Gustav é uma ameaça constante para Hugo.
A estação que Hugo observa, escondido atrás dos mostradores dos relógios é, em contrapartida, pintada com cores quentes. Os passageiros circulam, apressados e indiferentes. Os lojistas, como a florista Lisette (Emily Mortimer), vivem preguiçosamente a sua rotina, entediados, entre baguettes, croissants, flores, um fumo que não é de caldeiras, e sim de cigarros, mas continua presente, e pequenos romances que timidamente os desviam dos gestos repetidos todos os dias.
E é neste universo, e através destas personagens, que assistimos a uma das mais belas homenagens alguma vez feitas ao Cinema. É sobretudo de Cinema que se fala neste filme, desde a já referida primeira sequência (que cita “Goodfellas”, um filme de Scorsese de 1990), até ao seu último segundo.
Georges folheia rapidamente o caderno que contém instruções sobre o autómato, e os desenhos inscritos nas suas páginas ganham vida. E nós assistimos à ilusão da imagem em movimento, tal como criada na era pré-Lumière. Somos também conduzidos até ao salão do Grand Café de Paris, para fazermos parte de uma das primeiras sessões públicas de Cinema, e vermos como o público reagiu assustado ao ver no écran o comboio que chega à estação de La Ciotat. São-nos apresentados excertos de filmes de Charlie Chaplin e Buster Keaton. Hugo pendura-se nos ponteiros do relógio da estação, imitando o que viu Harold Lloyd fazer, quando sorrateiramente entrou com Isabelle na sala de Cinema. E assim se homenageiam os pioneiros da Sétima Arte, e se introduz a figura central deste filme, o primeiro grande cineasta – Georges Méliès.
Scorsese disse, em entrevista de promoção, que tudo o que é feito agora em Cinema, já Méliès fez antes. E o tributo é-lhe prestado neste “Hugo”, em que percorremos a sua história pessoal, incluindo o seu passado como mágico e a sua descoberta do Cinema, a sua obra, o seu estúdio (que foi reconstituído para este filme), os seus métodos e ilusões (podemos ver Méliès a filmar e a montar as suas películas). E também a forma como começou a conquistar o coração e a imaginação das primeiras pessoas que viram filmes, como deu origem aos primeiros cinéfilos.

A segunda figura central neste filme é o cinéfilo, personificado principalmente (embora não exclusivamente) por René Tabard (Michael Stuhlbarg). René Tabard é um estudioso da obra de Méliès, por quem foi conquistado em criança, altura em que o viu em acção no seu estúdio e assistiu aos seus filmes. A sua paixão torna-o no guardião de objectos, filmes e da memória do seu adorado realizador, mesmo quando, após a Primeira Guerra Mundial, todos já o esqueceram. E, depois do seu encontro com Hugo e Isabelle lhe trazer novas informações sobre Méliès, irá encontrar e restaurar mais filmes. E exibi-los, trazê-los de novo para as salas, resgatá-los a um destino de esquecimento que parecia inevitável. E, inevitavelmente, lembramo-nos do próprio trabalho, incansável e apaixonado, de Scorsese na descoberta, recuperação, e divulgação de velhas películas. Scorsese aparece-nos, ele mesmo, no filme, por breves instantes, como fotógrafo. Mas Scorsese, neste filme, é René Tabard.
O Cinema aparece-nos também neste “Hugo” enquanto tecnologia e enquanto tempo. Os mecanismos das máquinas que filmam e que projectam, criando a ilusão da imagem em movimento, são-nos explicitamente mostrados, e misturam-se com os dos relógios e do autómato. Os dispositivos mecânicos e os relógios são uma presença constante neste filme. E tornam omnipresente esta ideia de mecanismo e de movimento perpétuo e de tempo. Tempo e movimento, que são duas outras características do Cinema.

E o Cinema como magia e emoção. O Cinema como ilusão, em que imagens fixas parecem estar em movimento. O passado de Méliès como mágico e o presente de Hugo com os seus truques de cartas. A emoção que o Cinema provoca em quem o vê. A experiência de assistir a um filme numa sala de Cinema é justamente exaltada na cena em que Hugo e Isabelle penetram naquele mundo mágico para ver Harold Lloyd.


E, finalmente, a literatura como inspiração para os filmes. Na livraria de Monsieur Labisse, personagem interpretada por Christopher Lee, cuja presença neste filme é, por si só, uma referência e homenagem cinéfila, Hugo encontra Robin Hood, e refere ter visto o filme (de 1922, com Douglas Fairbanks). E já antes Isabelle se tinha referido à livraria como um mundo de fantasia, como “Oz” ou “A Ilha do Tesouro”, que foram, mais tarde, adaptados ao Cinema. É um mundo de magia que contagia o outro. E o misterioso autómato tem o poder da escrita, revelando dessa forma alguns dos segredos deste filme.
Mas é só sobre Cinema que Scorsese nos fala com este seu “Hugo”? Não, este filme tem um segundo grande tema. O que é que nos torna humanos, e nos distingue dos autómatos, dos dispositivos mecânicos?
Os adultos que povoam este filme, e que vivem e circulam no exterior da estação, apesar de pintados com cores quentes, são, paradoxalmente, seres tristes. Os lojistas vivem um dia-a-dia de rotinas, de aborrecimento. Vemo-los junto às suas bancas, às suas lojas, mas os passageiros nada compram, não estabelecem contacto com eles. E, apesar da vontade, dos tímidos “flirts”, uma barreira invisível impede-os de comunicar. Os passageiros que circulam na estação são como autómatos.
Numa cena muito importante do filme, Isabelle cai, e as pessoas que circulam continuam a andar, ignorando-a, e quase a pisando, indiferentes e apressados. São controlados pelos omnipresentes relógios, e são eles próprios peças de um mecanismo. Hugo, numa outra cena, diz que vê, por vezes, o mundo como um gigantesco mecanismo de que todos fazemos parte, e em que todos desempenhamos uma função. A Primeira Guerra Mundial terminou há pouco, deixando profundas marcas. O Cinema, recentemente criado, e Méliès, o seu principal artesão, foram já esquecidos por estes autómatos de carne e osso que entram e saem dos comboios. Não há lugar para a magia nas suas vidas.
Tudo é diferente no mundo mais escuro e frio de Hugo e Isabelle. É lá, curiosamente, que sobrevive a magia. Eles comunicam e colaboram, dão as mãos, partilham sonhos e aventuras, perseguem objectivos que vão para além da mera função que lhes está destinada como peças de uma engrenagem. Hugo faz a manutenção dos relógios mas a sua vida não é controlada por eles, repara dispositivos mecânicos mas não é um deles. E o ser mecânico que vive com Hugo, apesar de composto por molas e rodas dentadas, é a sua companhia, de que Hugo desesperadamente necessita (referindo-o explicitamente), apesar de viver numa estação cheia de pessoas. Vemos como o autómato (inspirado por Pinóquio e visualmente inspirado por “Metropolis”?) “olha” para Hugo enquanto ele dorme, como o parece proteger. E o carinho que Hugo lhe devota, arriscando até a sua vida para o salvar dos carris.


Basta ser feito de carne e osso para ser humano? Ser feito de molas e rodas dentadas é o suficiente para não o ser? Este é um tema já tratado, de forma mais profunda, na literatura e no Cinema. O escrito Philip K. dick debruçou-se demoradamente sobre este assunto, e uma adaptação de uma obra sua ao Cinema, pelas mãos de Ridley Scott, resultou no magistral "Blade Runner" (a comemorar em 2012 o seu trigésimo aniversário). Nem "Hugo" nem "Blade Runner" arriscam uma resposta definitiva, mas dão-nos importantes pistas para reflexão. E sugerem uma resposta.
O que pode então tornar mais humanos aqueles autómatos de carne e osso que vivem e circulam na estação? Este “Hugo” sugere-nos que o caminho passa, entre outras coisas, como o amor e a amizade, pela recuperação da memória perdida, pela literatura, pela magia, pela cinefilia. Em resumo, pelo Cinema. E assim temos a ligação entre os dois temas do filme.
“Hugo” surge, curiosamente, em simultâneo com duas outras importantes homenagens aos pioneiros do Cinema, e ao filme mudo – “O Artista” (Michel Hazanavicius, 2011) e “Tabu” (Miguel Gomes, 2012). Apenas uma coincidência? Ou este novo período de transição na história do Cinema, com o fim da película, e todos os desafios que se colocam com os “downloads” gratuitos de filmes, trouxe, consciente ou inconscientemente, a necessidade de recordar as origens?
“A Invenção de Hugo” é um filme belíssimo, com uma fotografia deslumbrante, e uma das melhores utilizações de sempre do 3D. É uma declaração apaixonada dirigida ao Cinema, aos seus pioneiros, a todos os que o fazem hoje, e aos cinéfilos. Endereçada pelo maior cinéfilo de todos, o maior de sempre, o “mestre” Martin Scorsese. Fica ao lado, ou mesmo acima, de “Cinema Paradiso”, como um dos grandes filmes sobre a cinefilia e o próprio Cinema.

Título em português: A Invenção de Hugo
Título original: Hugo
Realização: Martin Scorsese
Produção: Martin Scorsese, Johnny Depp
Argumento: John Logan e Brian Selznick, adaptando o livro “A Invenção de Hugo Cabret”, de Brian Selznick.
Elenco: Ben Kingsley (Georges), Asa Butterfield (Hugo), Chloë Grace Moretz (Isabelle), Sacha Baron Cohen (Gustav), Emily Mortimer (Lisette), Christopher Lee (Monsieur Labisse), Helen McCrory (Jeanne), Michael Stuhlbarg (René Tabard), Jude Law (pai de Hugo).
Cinematografia: Robert Richardson
Montagem: Thelma Schoonmaker
Música: Howard Shore
“Hugo” é a vigésima segunda longa-metragem de ficção em quase 70 anos de vida, e 44 de carreira, de Martin Scorsese. Martin Scorsese realizou filmes como “Taxi Driver”, “Raging Bull” e “Goodfellas”.
É a primeira adaptação ao Cinema de um livro de Brian Selznick, que assina também o seu primeiro argumento.
O protagonista Asa Butterfield tem a sua quinta aparição no Cinema, tendo já participado em filmes como “O Rapaz do Pijama às Riscas” e “Nanny McPhee e o Toque de Magia”.
A protagonista Chloë Grace Moretz tem já o seu décimo oitavo papel no Cinema, tendo anteriormente protagonizado a versão americana de “Deixa-me Entrar”.
Sir Ben Kingsley atinge com este filme as 56 participações no Cinema, sendo “Gandhi” o seu momento mais alto. É a segunda colaboração com Martin Scorsese, depois de “Shutter Island”.
Carlos Rui Ribeiro 

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